quinta-feira, novembro 18, 2004

O (des)caminho das águas


É hoje crescente, em todo o Mundo, a preocupação e sensibilidade das populações e das organizações sociais perante os problemas da água, e a consciência da sua importância decisiva para o ambiente, a saúde pública, o desenvolvimento económico e a qualidade de vida. Em particular no que se refere ao acesso aos serviços de abastecimento de água para consumo público e de saneamento de águas residuais urbanas, essa consciência tem evoluído, claramente, no sentido de considerar tais serviços como um direito humano fundamental cujo exercício deve ser devidamente assegurado pelos Estados. Estão, por isso, cada vez mais em retrocesso, em todo o Mundo, as concepções da água como mercadoria e dos serviços de água como negócio.

Dois exemplos recentes, entre muitos outros, ilustram bem esta evolução.

A Holanda, um Estado-membro da UE que se distingue por ser dos mais avançados, a nível mundial, no domínio da água, aprovou, este ano, uma lei que delimita ao sector público a prestação dos serviços de água, transformando em política do Estado a situação já vigente, na prática, naquele país, onde não existe qualquer concessão deste tipo de serviços a privados, tal como sucede, aliás, na grande maioria dos países mais desenvolvidos, designadamente ao nível da UE. Esta medida está conforme, também, com a legislação da UE que confere aos Estados-membros total autonomia nesta matéria, não existindo qualquer directiva que requeira a liberalização do Sector da Água.

O Uruguai, Estado da América Latina onde existem serviços de abastecimento de água e de saneamento de águas residuais relativos a vários municípios que estão concessionados a privados, e onde se têm verificado graves problemas com estas concessões, seja no que se refere ao grande aumento dos tarifários, seja no que se refere à deficiente qualidade dos serviços prestados, acaba de aprovar, através de um referendo nacional muito participado, uma alteração constitucional que consagra a água como bem público e o acesso aos serviços de água como um direito humano fundamental, ao mesmo tempo que proíbe futuras concessões destes serviços a privados, passando os mesmos a ser prestados, exclusivamente, pelo sector público.

Julgo que estas medidas traduzem, de forma emblemática, a mudança de mentalidades que se está a operar, a nível mundial, face à vaga neo-liberal que pretende despojar o Estado de importantes instrumentos para poder promover uma adequada satisfação de necessidades fundamentais, e que pretende tratar a satisfação destas necessidades no quadro estrito do mercado e dos negócios privados. Mais do que negar o reconhecimento do importante papel que o sector privado pode e deve ter na satisfação destas necessidades fundamentais, o que aquelas medidas consagram é o reconhecimento do inalienável papel do Estado e do sector público em assegurar que tal satisfação se faz de forma universal e equitativa e num quadro de sustentabilidade económica, financeira, técnica, social e ambiental, objectivos essenciais para os quais o sector privado não está, manifestamente, vocacionado.

Em Portugal, a orientação do Governo para o Sector da Água tem estado, desde 2002, mais apostada em seguir a vaga neo-liberal, manifestando uma obsessão doentia e prenunciadora de grandes prejuízos para o País, de desmantelamento e privatização do Grupo Águas de Portugal, alienando assim as suas funções e responsabilidades fundamentais nesta matéria, numa completa inversão do caminho que vinha sendo seguido no nosso País, com reconhecido êxito, desde 1993.

E se é verdade que o actual Ministro do Ambiente já manifestou as suas dúvidas quanto à anunciada privatização da "holding" AdP-Águas de Portugal, não é menos verdade que também manifestou o seu total apoio à orientação traçada pelo Governo de Durão Barroso de desmantelamento do Grupo, o que deixará o Estado menos equipado para o exercício das suas inalienáveis responsabilidades em matéria ambiental, e porá em risco a manutenção, em Portugal, de importantes centros de decisão e competência.

Pode, pois, concluir-se que o caminho traçado para o Sector da Água continua a ser, infelizmente, muito perigoso para o País.

(Artigo publicado no "Diário Económico" de 18.Nov.2004)

quinta-feira, novembro 04, 2004

Um Ministro contraditório


Quem teve a oportunidade e o interesse em assistir, no Canal Parlamento da TV Cabo, à transmissão da recente audição do Ministro do Ambiente e do Ordenamento do Território perante a Comissão Parlamentar de Poder Local, Ordenamento do Território e Ambiente, não pode ter deixado de ficar muito surpreendido com as intervenções de Nobre Guedes e de constatar o autêntico exercício do contraditório feito por este Ministro face aos seus três antecessores - Isaltino Morais, Amílcar Theias e Arlindo Cunha - e ao que tem sido a política de Ambiente do Governo da actual maioria no Parlamento.

Desde logo, porque apesar de ser um Ministro do CDS/PP, Partido que, no seu Programa Eleitoral de 1999, propunha o desaparecimento do Ministério do Ambiente e a sua substituição por uma Secretaria de Estado integrada no Ministério da Agricultura, Nobre Guedes procurou passar uma imagem de grande e empenhado defensor de importantes causas ambientais, desde a protecção do litoral até ao combate aos interesses que atentam contra a qualidade do ambiente, passando pelo desenvolvimento sustentável e pelo cumprimento do Protocolo de Quioto, tudo matérias que se inserem mal na política sectorial da agricultura.

Depois, porque o Ministro passou um autêntico atestado de incompetência e de falta de operacionalidade aos seu três antecessores, ao propor-se realizar, em seis meses, um vasto conjunto de medidas que esses antecessores não conseguiram realizar em dois anos e meio. Aliás, neste domínio, Nobre Guedes evidenciou uma grande obsessão pelo ex-Ministro José Sócrates, fazendo permanentemente comparações entre as orientações seguidas e o trabalho realizado por aquele Ministro durante dois anos e meio em que foi titular da pasta do Ambiente e o que ele, Nobre Guedes, queria fazer agora, como se, entretanto, não tivesse havido dois anos e meio de Governo Durão Barroso e três Ministros do Ambiente. A coisa foi mesmo ao ponto de Nobre Guedes ter apresentado, como muito positivo da sua parte, o facto de ter mantido como Inspector Geral do Ambiente o anterior Chefe de Gabinete de José Sócrates, esquecendo-se que estava a manter o Inspector Geral já antes também designado por Isaltino Morais e mantido por Amílcar Theias e Arlindo Cunha! E ainda bem.

Depois também, porque Nobre Guedes considerou completamente disparatada a posição de privatização da EPAL anteriormente defendida, com muita determinação, quer por Durão Barroso quer por outros Ministros do seu Governo, que chegaram a anunciar essa privatização até ao final de 2002. Assim como manifestou as maiores dúvidas relativamente à decisão do Conselho de Ministros de 17/Maio/2004 de, até ao final de 2005, privatizar a Águas de Portugal até 49% do seu capital social, contraditando, inclusivamente, as Grandes Opções do Plano acabadas de enviar à Assembleia da República pelo Governo a que o Ministro pertence. E tudo isto com o manear de cabeça de assentimento dos deputados da maioria que, anteriormente, se tinham maneado da mesma maneira quando medidas opostas foram apresentadas pelo Governo.

Por outro lado, Nobre Guedes parece estar, em muitos casos, deficientemente informado sobre a realidade dos factos, como já o demonstrou, por exemplo, a propósito de ter considerado inevitável, no próximo ano, o racionamento de água no Algarve se não chovesse suficientemente este ano, devido ao atraso da construção da barragem de Odelouca, quando existem soluções provisórias que podem e devem ser accionadas para evitar essa situação, competindo ao Ministério do Ambiente um decisivo papel nesta matéria.

Como é evidente, muitas das anunciadas intenções do Ministro Nobre Guedes devem merecer o nosso aplauso e apoio, tal como o devem merecer a sua declarada intenção de fazer e decidir, desde que faça e decida bem e no interesse do País, mas a verdade é que estamos apenas no reino das intenções anunciadas, desconhecendo-se o seu conteúdo concreto, e o mínimo que se pode dizer, neste momento, é que tais intenções não batem certo com as políticas que têm vindo a ser anunciadas ou praticadas, desde 2002, pelo Governo da actual maioria.

Alguém parece andar a enganar ou a ser enganado.

(Artigo publicado no "Diário Económico" de 4.Nov.2004)

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