quinta-feira, julho 29, 2004
Heranças
A utilização do Produto Interno Bruto (PIB) ou de outro indicador macroeconómico equivalente, como critério único para medir ou avaliar o grau de desenvolvimento humano, já foi, há muito tempo, abandonada, estando hoje instituído, designadamente ao nível do sistema das Nações Unidas, um critério muito mais abrangente e rigoroso para o efeito. Refiro-me, como é evidente, ao Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), definido pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) em 1990 e que, desde então, e anualmente, tem sido objecto de um Relatório do Desenvolvimento Humano (RDH) elaborado e difundido por aquela importante e prestigiada organização.
Como se refere no RDH de 1990, as pessoas não podem ser consideradas apenas como criaturas económicas: o que verdadeiramente caracteriza o ser humano e o seu desenvolvimento é um conjunto de condições que traduzem a forma como as capacidades humanas são acrescidas, melhoradas e utilizadas. Por outras palavras, se é certo que o crescimento do PIB é absolutamente necessário para garantir o desenvolvimento humano, considerado como um ambiente propício para as pessoas usufruírem de uma vida longa, saudável, estimulante e criativa, o que é verdadeiramente importante é analisar em que medida tal crescimento se reflecte ou não nesse desenvolvimento.
A construção de um índice cada vez mais susceptível de traduzir adequadamente o desenvolvimento humano, de poder ser aplicado à generalidade dos países e de, assim, permitir fazer comparações e estabelecer anualmente um ranking mundial nesta matéria tem sido objecto de estudos demorados e aprofundados, os quais têm conduzido ao progressivo aperfeiçoamento do IDH definido em 1990.
Nos últimos anos, o IDH tem vindo a ser calculado a partir da determinação do valor de quatro indicadores agregados que se considera traduzirem um conjunto muito mais vasto de indicadores de base relativos a três áreas fundamentais para a definição do desenvolvimento humano: longevidade, conhecimento e condições de vida decentes. Tais indicadores agregados são a esperança de vida à nascença, a taxa de alfabetização de adultos, a taxa de escolarização bruta combinada dos ensinos primário, secundário e superior, e o PIB per capita.
É muito interessante e instrutivo analisar a evolução da posição ocupada por Portugal no ranking mundial do IDH, desde que este indicador de desenvolvimento passou a ser calculado e divulgado pelo PNUD.
Assim, em 1990, Portugal ocupava a 36ª posição, enquanto a Espanha e a Grécia, por exemplo, ocupavam, respectivamente, a 20ª e a 24ª posições.
Em 1995, Portugal evoluiu para a 33ª posição, mas atrasou-se em relação à Grécia que subiu para a 20ª posição, e ainda mais significativamente em relação à Espanha que subiu para a 11ª posição.
Em 2000, verifica-se uma melhoria sensível da posição de Portugal que passa a ocupar o 28º lugar do ranking, aproximando-se da Espanha e da Grécia que ocupavam, respectivamente, a 21ª e a 24ª posições.
Em 2001, Portugal dá um novo salto em frente, passando a ocupar a 23ª posição, aproximando-se da Espanha agora na 19ª posição e ultrapassando a Grécia que continuou na 24ª posição.
Aquilo que o PSD e o CDS designam por "pesada herança Guterrista" traduziu-se assim, nesta matéria, num salto qualitativo muito significativo de dez lugares no ranking mundial do IDH.Já no que se refere à herança Barrosista, para manter a mesma terminologia, o mínimo que se pode dizer é que começou mal. Na realidade, no último RDH publicado recentemente com os dados de 2002, Portugal tinha recuado para a 26ª posição, tornando a afastar-se da Espanha na 20ª posição e sendo de novo ultrapassado pela Grécia na 24ª posição.
No que se refere a muitos outros indicadores com impacto no desenvolvimento humano, como o emprego, o investimento, os salários reais, etc., os dados de 2002 traduzem também um significativo retrocesso. E não me parece que em 2003 e 2004 se tenha estado a ir por melhor caminho.
(Artigo publicado no "Diário Económico" de 29.Jul.2004)
quinta-feira, julho 15, 2004
As contradições da Olívia
Muitos leitores certamente se recordarão de Ivone Silva, uma das maiores e mais populares artistas da chamada Revista à Portuguesa, que criou numerosas personagens fabulosas que tão bem caricaturaram a situação política portuguesa e muitos dos seus intervenientes, antes e depois do 25 de Abril. Uma dessas personagens, criada precisamente depois do 25 de Abril, foi a Olívia, costureira, que trabalhava sozinha em casa para as clientes que ia arranjando e que, portanto, era simultaneamente empregada e patroa de si mesma.
Olívia vivia em grande e permanente contradição: como Olívia patroa, exigia que Olívia costureira trabalhasse mais depressa e mais horas, que não fizesse férias, que tivesse menos salário e não recebesse horas extraordinárias; como Olívia costureira, reivindicava à Olívia patroa maior salário, redução das horas de trabalho e aumento do período de férias.
Este quadro de revista veio-me à memória a propósito da Directiva-Quadro da Água da UE que já devia ter sido transposta para o nosso direito interno até ao passado dia 22 de Dezembro e que ainda não o foi, nem ninguém sabe bem quando será transposta.
Como é sabido, esta Directiva estabelece um quadro de acção comunitária no domínio da política da água, constituindo um dos mais importantes, bem elaborados, consistentes e exigentes actos legislativos para a implementação da política do ambiente da EU, tal como está consignado no 6º Programa Comunitário de Acção no Domínio do Ambiente, adoptado pelo Parlamento Europeu e pelo Conselho em Janeiro de 2001.
A versão final desta Directiva foi aprovada durante a Presidência Portuguesa do Conselho da EU, ocorrida durante o primeiro semestre de 2000, tendo constituído um dos pontos mais altos dessa Presidência.
Sabendo que o processo de transposição da Directiva seria complexo e moroso, o então Ministro do Ambiente José Sócrates deu, logo em Junho de 2000, início a esse processo, nele envolvendo os departamentos pertinentes do seu Ministério e vários especialistas na matéria. Como resultado do trabalho realizado, foi elaborado um Anteprojecto da Lei da Água que não só assegurava a transposição da Directiva como procedia a uma actualização geral da nossa legislação básica no domínio da água. O objectivo era que Portugal passasse a dispor de uma Lei da Água moderna e consistente, em sintonia com a Directiva, que garantisse as necessárias condições institucionais e legais à sua implementação, fundada nos conceitos e princípios que mais consensualmente têm vindo a ser defendidos pela comunidade científica e técnica, que incorporasse a rica experiência recolhida no País ao longo de muitos anos e que corrigisse as disfunções e deficiências mais sentidas na legislação actualmente em vigor. Este Anteprojecto foi formalmente apresentado por José Sócrates ao Conselho Nacional da Água em Março de 2002, já no termo do exercício das suas funções.
Infelizmente, este processo, a partir daqui, passou inexplicavelmente a "arrastar os pés", para não dizer mesmo que deixou completamente de "mexer os pés" durante oito longos meses, só voltando a ser retomado pelo então ministro Isaltino de Morais em Novembro de 2002, tendo ainda sofrido de alguma paragem aquando da substituição daquele ministro pelo Ministro Amílcar Theias, o qual veio a ultimar um novo Anteprojecto pouco antes de ser substituído pelo novo Ministro Arlindo Cunha, com o novo compasso de espera daí decorrente.
Como consequência, Portugal não procedeu ainda à transposição da Directiva-Quadro da Água, tendo a Comissão Europeia enviado já uma última advertência escrita ao nosso País, a que se seguirá, no caso do incumprimento se manter, como é previsível, um processo contencioso de que poderão resultar graves prejuízos para Portugal.Durão Barroso vai encontrar-se, assim, na posição da Olívia: como Durão Barroso Presidente da Comissão Europeia vai ter que exigir, a Portugal, responsabilidades pelo facto de Durão Barroso ex-Primeiro Ministro de Portugal não ter cumprido as suas obrigações como devia.
(Artigo piblicado no "Diário Económio" de 15.Jul.2004)
quinta-feira, julho 01, 2004
Dar a voz aos portugueses
Na semana passada, quando assistia no Coliseu dos Recreios a um concerto da Orquestra Filarmónica de Munique, tive o grato prazer de participar num acto pouco comum em Portugal neste tipo de espectáculos, e que muito positivamente me sensibilizou: quando no início do concerto a orquestra começou a tocar o Hino Nacional, aliás com uma bela interpretação, assinalando a presença do Presidente da República, toda a assistência começou espontaneamente a cantar, primeiro com alguma timidez mas, depois, com força e até com bastante afinação. Foi uma manifestação de genuíno orgulho nacional, de confiança colectiva e de auto-estima, de que os portugueses têm, ultimamente, andado bastante arredados. Estou convicto de que aquela manifestação se inseriu no ambiente de euforia nacional provocado pela excelente "performance" da selecção portuguesa de futebol no Euro 2004, alicerçada no bom trabalho colectivo realizado pelos seus principais intervenientes e no empenho posto no cumprimento dos objectivos e compromissos assumidos.
Há quem considere menores estas razões futebolísticas para fundamentar tal manifestação de orgulho, confiança e auto-estima, mas são as que temos neste momento e que, por isso, devem ser devidamente valorizadas, tanto mais que elas estão associadas a atitudes e comportamentos reveladores de elevado carácter, seriedade e profissionalismo que devem ser seguidos em qualquer missão a que nos comprometemos. Só para dar um exemplo, refiro a resposta dada por Deco à pergunta que lhe foi feita sobre a sua eventual transferência para o Barcelona: agora estava exclusivamente empenhado em cumprir os compromissos que tinha assumido com a selecção portuguesa e só depois desses compromissos terem terminado é que assumiria novos compromissos. Resposta idêntica foi dada por outros jogadores portugueses a perguntas similares.
Vem isto a propósito do exemplo de sentido contrário dado agora pelo primeiro ministro Durão Barroso que, por opção pessoal, abandonou a meio os compromissos assumidos com o País, para se dedicar a outra missão que considerou para si mais estimulante.
É certo que a designação de um português para um cargo de grande relevância política como é o de Presidente da Comissão Europeia poderia ser, para nós, motivo de orgulho e satisfação; mas tais sentimentos esboroam-se completamente face à grave crise política criada pela opção seguida pelo primeiro ministro.
Acresce que Durão Barroso foi a terceira ou quarta escolha dos promotores da sua designação, não constituindo, por isso, uma opção convicta mas antes uma solução de recurso susceptível de ser aceite, à falta de melhor, pela maioria de direita do Parlamento Europeu.
E quanto à pertença representatividade de Portugal assegurada por esta designação, como pode a maioria do povo português considerar-se bem representada por quem foi estrondosamente derrotado, precisamente nas recentes eleições europeias?
Não sei se as motivações da deserção de Durão Barroso foram a consciência de que a sua governação estava a afundar progressivamente o País, provocando um crescimento galopante do desemprego e das desigualdades sociais, a par de um crescimento do PIB abaixo da média europeia e de uma crescente contestação popular, problemas para os quais já não tinha condições nem força anímica para resolver. E se, face à perspectiva de ter de suportar ainda mais quase dois anos sofridos de mandato como primeiro ministro, não foi seduzido pela possibilidade de trocar este cenário por cinco anos de mandato como Presidente da Comissão Europeia. O que sei é que tal deserção foi aprovada, sem qualquer constrangimento, pelo seu partido, que assim mostrou também o seu entendimento sobre o valor das promessas feitas e dos compromissos assumidos com o povo português. Partido que, depois disto, pretende evitar, a todo o custo, a expressão do veredicto popular sobre o seu comportamento.
Poderá o Presidente da República continuar a confiar o Governo do País a tais protagonistas e que estes não se envolverão, no futuro, noutras deserções similares, à medida que a situação do País se vá tornando mais ingovernável?
Está, portanto, na hora de ser dada a palavra aos portugueses, como aliás estes já reclamam.
(Artigo publicado no "Diário Económico" de 1.Jul.2004)