quinta-feira, julho 15, 2004
As contradições da Olívia
Muitos leitores certamente se recordarão de Ivone Silva, uma das maiores e mais populares artistas da chamada Revista à Portuguesa, que criou numerosas personagens fabulosas que tão bem caricaturaram a situação política portuguesa e muitos dos seus intervenientes, antes e depois do 25 de Abril. Uma dessas personagens, criada precisamente depois do 25 de Abril, foi a Olívia, costureira, que trabalhava sozinha em casa para as clientes que ia arranjando e que, portanto, era simultaneamente empregada e patroa de si mesma.
Olívia vivia em grande e permanente contradição: como Olívia patroa, exigia que Olívia costureira trabalhasse mais depressa e mais horas, que não fizesse férias, que tivesse menos salário e não recebesse horas extraordinárias; como Olívia costureira, reivindicava à Olívia patroa maior salário, redução das horas de trabalho e aumento do período de férias.
Este quadro de revista veio-me à memória a propósito da Directiva-Quadro da Água da UE que já devia ter sido transposta para o nosso direito interno até ao passado dia 22 de Dezembro e que ainda não o foi, nem ninguém sabe bem quando será transposta.
Como é sabido, esta Directiva estabelece um quadro de acção comunitária no domínio da política da água, constituindo um dos mais importantes, bem elaborados, consistentes e exigentes actos legislativos para a implementação da política do ambiente da EU, tal como está consignado no 6º Programa Comunitário de Acção no Domínio do Ambiente, adoptado pelo Parlamento Europeu e pelo Conselho em Janeiro de 2001.
A versão final desta Directiva foi aprovada durante a Presidência Portuguesa do Conselho da EU, ocorrida durante o primeiro semestre de 2000, tendo constituído um dos pontos mais altos dessa Presidência.
Sabendo que o processo de transposição da Directiva seria complexo e moroso, o então Ministro do Ambiente José Sócrates deu, logo em Junho de 2000, início a esse processo, nele envolvendo os departamentos pertinentes do seu Ministério e vários especialistas na matéria. Como resultado do trabalho realizado, foi elaborado um Anteprojecto da Lei da Água que não só assegurava a transposição da Directiva como procedia a uma actualização geral da nossa legislação básica no domínio da água. O objectivo era que Portugal passasse a dispor de uma Lei da Água moderna e consistente, em sintonia com a Directiva, que garantisse as necessárias condições institucionais e legais à sua implementação, fundada nos conceitos e princípios que mais consensualmente têm vindo a ser defendidos pela comunidade científica e técnica, que incorporasse a rica experiência recolhida no País ao longo de muitos anos e que corrigisse as disfunções e deficiências mais sentidas na legislação actualmente em vigor. Este Anteprojecto foi formalmente apresentado por José Sócrates ao Conselho Nacional da Água em Março de 2002, já no termo do exercício das suas funções.
Infelizmente, este processo, a partir daqui, passou inexplicavelmente a "arrastar os pés", para não dizer mesmo que deixou completamente de "mexer os pés" durante oito longos meses, só voltando a ser retomado pelo então ministro Isaltino de Morais em Novembro de 2002, tendo ainda sofrido de alguma paragem aquando da substituição daquele ministro pelo Ministro Amílcar Theias, o qual veio a ultimar um novo Anteprojecto pouco antes de ser substituído pelo novo Ministro Arlindo Cunha, com o novo compasso de espera daí decorrente.
Como consequência, Portugal não procedeu ainda à transposição da Directiva-Quadro da Água, tendo a Comissão Europeia enviado já uma última advertência escrita ao nosso País, a que se seguirá, no caso do incumprimento se manter, como é previsível, um processo contencioso de que poderão resultar graves prejuízos para Portugal.Durão Barroso vai encontrar-se, assim, na posição da Olívia: como Durão Barroso Presidente da Comissão Europeia vai ter que exigir, a Portugal, responsabilidades pelo facto de Durão Barroso ex-Primeiro Ministro de Portugal não ter cumprido as suas obrigações como devia.
(Artigo piblicado no "Diário Económio" de 15.Jul.2004)