quinta-feira, julho 01, 2004
Dar a voz aos portugueses
Na semana passada, quando assistia no Coliseu dos Recreios a um concerto da Orquestra Filarmónica de Munique, tive o grato prazer de participar num acto pouco comum em Portugal neste tipo de espectáculos, e que muito positivamente me sensibilizou: quando no início do concerto a orquestra começou a tocar o Hino Nacional, aliás com uma bela interpretação, assinalando a presença do Presidente da República, toda a assistência começou espontaneamente a cantar, primeiro com alguma timidez mas, depois, com força e até com bastante afinação. Foi uma manifestação de genuíno orgulho nacional, de confiança colectiva e de auto-estima, de que os portugueses têm, ultimamente, andado bastante arredados. Estou convicto de que aquela manifestação se inseriu no ambiente de euforia nacional provocado pela excelente "performance" da selecção portuguesa de futebol no Euro 2004, alicerçada no bom trabalho colectivo realizado pelos seus principais intervenientes e no empenho posto no cumprimento dos objectivos e compromissos assumidos.
Há quem considere menores estas razões futebolísticas para fundamentar tal manifestação de orgulho, confiança e auto-estima, mas são as que temos neste momento e que, por isso, devem ser devidamente valorizadas, tanto mais que elas estão associadas a atitudes e comportamentos reveladores de elevado carácter, seriedade e profissionalismo que devem ser seguidos em qualquer missão a que nos comprometemos. Só para dar um exemplo, refiro a resposta dada por Deco à pergunta que lhe foi feita sobre a sua eventual transferência para o Barcelona: agora estava exclusivamente empenhado em cumprir os compromissos que tinha assumido com a selecção portuguesa e só depois desses compromissos terem terminado é que assumiria novos compromissos. Resposta idêntica foi dada por outros jogadores portugueses a perguntas similares.
Vem isto a propósito do exemplo de sentido contrário dado agora pelo primeiro ministro Durão Barroso que, por opção pessoal, abandonou a meio os compromissos assumidos com o País, para se dedicar a outra missão que considerou para si mais estimulante.
É certo que a designação de um português para um cargo de grande relevância política como é o de Presidente da Comissão Europeia poderia ser, para nós, motivo de orgulho e satisfação; mas tais sentimentos esboroam-se completamente face à grave crise política criada pela opção seguida pelo primeiro ministro.
Acresce que Durão Barroso foi a terceira ou quarta escolha dos promotores da sua designação, não constituindo, por isso, uma opção convicta mas antes uma solução de recurso susceptível de ser aceite, à falta de melhor, pela maioria de direita do Parlamento Europeu.
E quanto à pertença representatividade de Portugal assegurada por esta designação, como pode a maioria do povo português considerar-se bem representada por quem foi estrondosamente derrotado, precisamente nas recentes eleições europeias?
Não sei se as motivações da deserção de Durão Barroso foram a consciência de que a sua governação estava a afundar progressivamente o País, provocando um crescimento galopante do desemprego e das desigualdades sociais, a par de um crescimento do PIB abaixo da média europeia e de uma crescente contestação popular, problemas para os quais já não tinha condições nem força anímica para resolver. E se, face à perspectiva de ter de suportar ainda mais quase dois anos sofridos de mandato como primeiro ministro, não foi seduzido pela possibilidade de trocar este cenário por cinco anos de mandato como Presidente da Comissão Europeia. O que sei é que tal deserção foi aprovada, sem qualquer constrangimento, pelo seu partido, que assim mostrou também o seu entendimento sobre o valor das promessas feitas e dos compromissos assumidos com o povo português. Partido que, depois disto, pretende evitar, a todo o custo, a expressão do veredicto popular sobre o seu comportamento.
Poderá o Presidente da República continuar a confiar o Governo do País a tais protagonistas e que estes não se envolverão, no futuro, noutras deserções similares, à medida que a situação do País se vá tornando mais ingovernável?
Está, portanto, na hora de ser dada a palavra aos portugueses, como aliás estes já reclamam.
(Artigo publicado no "Diário Económico" de 1.Jul.2004)