quinta-feira, fevereiro 26, 2004

A competência para tomar decisões


A questão dos Centros de Decisão Nacionais (CDN), suscitada pela venda de importantes empresas portuguesas a empresas estrangeiras, tem estado a ser alvo de um interessante debate público, perfeitamente justificado pela importância que o tema tem para o futuro do nosso País. A diversidade de opiniões manifestada traduz, claramente, mais do que diferenças de natureza teórica ou conceptual na abordagem desta questão, a diversidade dos interesses em presença.

Há, por exemplo, vários intervenientes neste debate que, defendendo o primado da economia de mercado e do capital privado nas suas versões mais liberais, e o consequente abandono pelo Estado das suas funções na economia, designadamente enquanto garante e promotor da satisfação das necessidades básicas dos cidadãos e da independência e soberania nacionais, pretendem atribuir ao sector privado a missão patriótica de garantir a manutenção e ampliação dos CDN, "esquecendo-se" que o capital privado não tem pátria e que a principal obrigação de um gestor privado é criar valor para os seus accionistas e não, necessariamente, para o País.

Por outro lado, alguns empresários e gestores portugueses, em muitos casos envolvidos em processos de venda de empresas portuguesas ou a exercer funções próximas de centros de decisão localizados noutros países têm vindo a defender a tese de que ter CDN não é importante para o País, sendo que o importante é ter Centros de Competência Nacionais (CCN), de que esses empresários e gestores seriam, evidentemente, lídimos representantes. A ser correcta esta tese, devíamos estar a assistir a um amplo movimento, liderado pelos EUA e integrando o Reino Unido, a Alemanha, o Japão e, de uma maneira geral, todos os países mais desenvolvidos, com vista a desembaraçarem-se dos seus CDN, transferindo-os, quem sabe, para o Haiti ou o Burkina-Faso. Mas não é isso que acontece, antes pelo contrário.

A verdade, é que os CDN são fundamentais para qualquer país, e que não é aos empresários e gestores privados, mas sim ao Estado, que pode e deve ser cometida a missão patriótica de os angariar e conservar, sem prejuízo, evidentemente, do relevante papel que os empresários e gestores privados nacionais podem ter no cumprimento desta missão. E a única forma segura de prosseguir esta missão é o Estado manter um controle adequado destes CDN.

É certo que há CDN com diferentes graus de importância estratégica, mas esses graus não têm um valor absoluto, variando de país para país, de acordo com o seu estádio de desenvolvimento, as suas potencialidades e prioridades, o número e qualidade dos CDN que detêm, etc.

No caso de Portugal, manter os poucos CDN que possui, especialmente em áreas estratégicas para o nosso desenvolvimento económico e social, bem-estar e afirmação no Mundo é, por isso, um desígnio patriótico da maior relevância que nenhum Governo pode, legitimamente, descartar.

O sector da água, designadamente no que se refere aos serviços públicos de abastecimento de água e saneamento de águas residuais, não pode deixar de ser considerado, neste contexto, como um sector em que se exige a manutenção dos nossos CDN.

Na realidade, a água é um dos poucos recursos naturais de que o País dispõe, com alguma abundância, para promover o seu desenvolvimento sustentável e a qualidade de vida das populações. Acresce que a água, como refere a Directiva-Quadro da Água da UE, «não é um produto comercial como outro qualquer, mas um património que deve ser protegido, defendido e tratado como tal». Além disso, Portugal detém elevadas competências e experiência no sector da água, nacional e internacionalmente reconhecidas, sendo ainda este sector altamente potenciador do desenvolvimento de múltiplas actividades económicas nacionais, a montante e a jusante.

Não basta, portanto, contentarmo-nos por determos CCN neste sector. É que há uma competência que nos fica automaticamente vedada se não tivermos CDN: é a competência para tomar decisões. E se não tivermos esta competência, mais cedo, antes que mais tarde, perderemos ou diminuiremos também, inexoravelmente, as outras competências.

(Artigo publicado do "Diário Económico" de 26.Fev.2004)

quinta-feira, fevereiro 12, 2004

Um milagre na lezíria


A Associação de Municípios da Lezíria do Tejo anunciou estar a promover uma solução inovadora com vista a resolver os problemas de abastecimento de água e saneamento dos respectivos municípios, a qual passa pela constituição de uma empresa intermunicipal com participação de parceiros de direito privado e o apoio do Fundo de Coesão.

O carácter inovador desta solução decorreria do facto de, contrariamente ao que se tem passado com os sistemas multimunicipais, o sistema intermunicipal integrar as componentes "em alta" e "em baixa" e os municípios deterem a maioria do capital social da referida empresa, parte dele realizado por transferência de equipamentos, e do facto de tal solução conduzir a tarifas muito mais baixas do que as obtidas com um sistema multimunicipal (embora não tenham sido divulgados os valores duma e doutra solução).

Para quem tem alguma experiência nesta matéria, a solução preconizada pela Associação de Municípios da Lezíria do Tejo e, em particular, o facto de tal solução conduzir a tarifas muito mais baixas não pode deixar de ser visto como um autêntico milagre. Na realidade, sabendo-se que nos sistemas multimunicipais a remuneração dos capitais próprios está obrigatoriamente limitada a um valor inferior ao que normalmente mobiliza a intervenção dos agentes privados, e que, em termos de eficiência, o desempenho dos sistemas multimunicipais é bastante elevado, não se percebe donde provêm os benefícios tarifários daquela solução.

É verdade que o facto desta solução integrar as componentes "em alta" e "em baixa" pode induzir economias de escala e na gestão do conjunto, mas tal não parece suficiente para justificar o mistério. Será que se estão a comparar soluções não comparáveis?

Por exemplo, no caso dos sistemas multimunicipais, a comparticipação dos fundos comunitários está limitada ao valor necessário para que a tarifa do sistema "em alta" não seja superior a cerca de 0,40 € e 0,45 € por metro cúbico, respectivamente para o abastecimento de água e para o saneamento. Como é possível um sistema beneficiar do apoio do Fundo de Coesão para ter tarifários "em alta" muito mais baixos?

Também nos contratos de concessão dos sistemas multimunicipais é exigido o cumprimento de determinados procedimentos para garantir o bom estado de funcionamento do sistema e a boa qualidade do serviço ao longo de todo o período da concessão, o que acarreta encargos a ser suportados pelas tarifas. Estão estas condições contempladas no sistema intermunicipal em apreço?

Mas as dúvidas não se ficam por aqui, havendo ainda questões relacionadas com a atribuição de fundos comunitários e de ordem legal que não estão claras na concepção deste sistema intermunicipal. É o caso, por exemplo, da realização do capital social em espécie por parte dos municípios, se os equipamentos a transferir para o efeito já tiverem beneficiado da comparticipação de fundos comunitários, pois não é previsível que tais fundos possam financiar duas vezes os mesmos equipamentos. É também o caso da lei de delimitação de sectores que determina que a participação de entidades privadas na gestão deste tipo de sistemas só se pode fazer em regime de concessão, o qual só pode ser atribuído através de concurso público. Então a empresa intermunicipal vai ser concessionária do sistema? E se for, essa concessão não lhe é atribuída por concurso público? E podem os municípios lançar um concurso público de concessão a que concorre uma empresa participada maioritariamente por esses municípios? E se a empresa intermunicipal não operar, ou não puder legalmente operar, em regime de concessão, podem entidades privadas ser accionistas ou sócias dessas empresas? E no caso de entidades privadas participarem no capital de empresas intermunicipais de capitais maioritariamente públicos e, portanto, terem intervenção na elaboração de cadernos de encargos e na apreciação de propostas no âmbito dos concursos de construção lançados por essas empresas, podem tais entidades privadas concorrer depois a esses concursos? E se não podem, como é que, na expressão dos promotores deste sistema intermunicipal, «vão buscar o deles»?

(Artigo publicado no "Diário Económico" de 12.Fev.2004)

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