quinta-feira, fevereiro 12, 2004
Um milagre na lezíria
A Associação de Municípios da Lezíria do Tejo anunciou estar a promover uma solução inovadora com vista a resolver os problemas de abastecimento de água e saneamento dos respectivos municípios, a qual passa pela constituição de uma empresa intermunicipal com participação de parceiros de direito privado e o apoio do Fundo de Coesão.
O carácter inovador desta solução decorreria do facto de, contrariamente ao que se tem passado com os sistemas multimunicipais, o sistema intermunicipal integrar as componentes "em alta" e "em baixa" e os municípios deterem a maioria do capital social da referida empresa, parte dele realizado por transferência de equipamentos, e do facto de tal solução conduzir a tarifas muito mais baixas do que as obtidas com um sistema multimunicipal (embora não tenham sido divulgados os valores duma e doutra solução).
Para quem tem alguma experiência nesta matéria, a solução preconizada pela Associação de Municípios da Lezíria do Tejo e, em particular, o facto de tal solução conduzir a tarifas muito mais baixas não pode deixar de ser visto como um autêntico milagre. Na realidade, sabendo-se que nos sistemas multimunicipais a remuneração dos capitais próprios está obrigatoriamente limitada a um valor inferior ao que normalmente mobiliza a intervenção dos agentes privados, e que, em termos de eficiência, o desempenho dos sistemas multimunicipais é bastante elevado, não se percebe donde provêm os benefícios tarifários daquela solução.
É verdade que o facto desta solução integrar as componentes "em alta" e "em baixa" pode induzir economias de escala e na gestão do conjunto, mas tal não parece suficiente para justificar o mistério. Será que se estão a comparar soluções não comparáveis?
Por exemplo, no caso dos sistemas multimunicipais, a comparticipação dos fundos comunitários está limitada ao valor necessário para que a tarifa do sistema "em alta" não seja superior a cerca de 0,40 € e 0,45 € por metro cúbico, respectivamente para o abastecimento de água e para o saneamento. Como é possível um sistema beneficiar do apoio do Fundo de Coesão para ter tarifários "em alta" muito mais baixos?
Também nos contratos de concessão dos sistemas multimunicipais é exigido o cumprimento de determinados procedimentos para garantir o bom estado de funcionamento do sistema e a boa qualidade do serviço ao longo de todo o período da concessão, o que acarreta encargos a ser suportados pelas tarifas. Estão estas condições contempladas no sistema intermunicipal em apreço?
Mas as dúvidas não se ficam por aqui, havendo ainda questões relacionadas com a atribuição de fundos comunitários e de ordem legal que não estão claras na concepção deste sistema intermunicipal. É o caso, por exemplo, da realização do capital social em espécie por parte dos municípios, se os equipamentos a transferir para o efeito já tiverem beneficiado da comparticipação de fundos comunitários, pois não é previsível que tais fundos possam financiar duas vezes os mesmos equipamentos. É também o caso da lei de delimitação de sectores que determina que a participação de entidades privadas na gestão deste tipo de sistemas só se pode fazer em regime de concessão, o qual só pode ser atribuído através de concurso público. Então a empresa intermunicipal vai ser concessionária do sistema? E se for, essa concessão não lhe é atribuída por concurso público? E podem os municípios lançar um concurso público de concessão a que concorre uma empresa participada maioritariamente por esses municípios? E se a empresa intermunicipal não operar, ou não puder legalmente operar, em regime de concessão, podem entidades privadas ser accionistas ou sócias dessas empresas? E no caso de entidades privadas participarem no capital de empresas intermunicipais de capitais maioritariamente públicos e, portanto, terem intervenção na elaboração de cadernos de encargos e na apreciação de propostas no âmbito dos concursos de construção lançados por essas empresas, podem tais entidades privadas concorrer depois a esses concursos? E se não podem, como é que, na expressão dos promotores deste sistema intermunicipal, «vão buscar o deles»?
(Artigo publicado no "Diário Económico" de 12.Fev.2004)