quinta-feira, fevereiro 10, 2005

Entrevista ao Diário de Notícias






"Futuro das águas não passa pelo desmantelamento da AdP mas por parcerias"

Entrevista de Ana Tomás Ribeiro e Helena Santareno a Mário Lino (ex-presidente das Águas de Portugal)


Temos assistido, nos últimos anos, a sucessivos avanços e recuos no modelo de privatização das águas. Tratando--se de um sector estratégico, qual é a solução? Terá de haver um pacto de regime para as águas?
Não é necessário nenhum pacto de regime, mas é um impasse que está a sair caro ao País. Agora, não estamos em guerra, a situação também não é assim tão dramática. Há visões diferentes, e o que é preciso é que haja um Governo que decida. Mas, durante os três anos deste Governo, disse-se as mais variadas coisas e não se fez nada. Não se investiu, e não só neste sector, mas noutros ligados ao ambiente. A lei da água está por fazer, a transposição da Directiva Quadro também, as relações com Espanha estão paralisadas. É uma baralhada. Quando, em 1993, Cavaco Silva decidiu este modelo não foi preciso nenhum pacto de regime. E o trabalho fez-se.

Se o PS for Governo, o que é que se pode esperar para o sector das águas?
Vai depender de quem tiver a pasta do Ambiente. A mim, o que me parece necessário fazer é, primeiro, relançar imediatamente o processo de infra-estruturação do País, porque não vamos ter muito mais dinheiro dos próximos quadros comunitários de apoio para isso; e depois encontrar formas de financiamento, de gestão, para resolver os problemas em baixa e a integração dos municípios. Ou seja, o modelo que estava a ser seguido precisa de ser aprofundado e passa pela definição clara do modelo para a Águas de Portugal (AdP), para que o sector privado saiba com o que é que conta. Mas na minha opinião o Estado tem de continuar a ser o líder deste processo. Agora não é com o desmantelamento do grupo AdP, ou a separação dos resíduos, que se vai resolver o problema. Para o PS, o grupo AdP funciona como um instrumento empresarial da política pública do Ambiente.

Mas é sempre possível a entrada dos privados na AdP?
Pessoalmente não tenho nenhuma posição contra a participação de capitais não públicos na AdP. Não é obrigatório, mas se for necessária, não me incomoda que exista, desde que seja para fortalecer o domínio público, não de o desmantelar. A AdP precisa de fazer grandes investimentos e o Estado não tem meios de acudir aos necessários aumentos de capital da holding para esses investimentos. Por essa razão, é bom que este trabalho também mobilize o sector privado, fazendo-o participar neste esforço financeiro. É uma estratégia que permitiria uma abertura do capital da AdP ao sector privado, mas mantendo a lógica de uma empresa de capitais proeminentemente públicos.

Como é que surgiu a ideia de que era necessário reestruturar o sector?
Tudo começou por uma luta partidária. A posição de Durão Barroso foi sempre a de destruir tudo o que estava de pé. Tudo o que estava para trás era para queimar. Por outro lado, havia pressões do sector privado, que queria entrar no negócio e desmantelar o grupo AdP, que estava a criar dificuldades à investida de grupos internacionais. Então, o que se fez foi que, 'à pala' de uma coisa a que se chamou, eufemisticamente, reestruturação do sector das águas, se tratou de desmantelar o grupo AdP, para dar lugar à intervenção privada.

Este modelo tem de ser melhorado?
De início, fizeram-se sistemas só para as águas (Águas do Cávado, Águas do Douro e Paiva, Águas do Algarve) e outros só para saneamento (Sanest). Os que se fizeram posteriormente, no âmbito do IV Quadro Comunitário de Apoio (QCA), já foram de água e saneamento. E há vantagens nessa integração. Deve haver a preocupação, que aliás houve no IV QCA, de fundir os sistemas. Por outro lado, a integração dos sistemas de água e saneamento no plano regional também será desejável, numa lógica de rentabilidade, porque cada um deles tem de ter um conjunto de requisitos que podem ser optimizados se servirem, em vez de dez municípios, 30 ou 40.

E no que respeita à rede em baixa...
O problema da rede em baixa é ainda mais sério. Em muitas situações, seria mais fácil resolver numa base plurimunicipal do que município a município. É um melhoramento que pode ser introduzido no modelo aumento da integração geográfica da água com o saneamento, da alta com a baixa e com a convicção de que os problemas de água e saneamento, vistos à escala de cada município, são de muito mais difícil resolução, para além de mais caros.

Como se sensibilizam os municípios?
Primeiro, tem de se falar com as pessoas e depois poderiam dar-se incentivos financeiros. É claro que tudo isto é difícil, porque os municípios não estão todos no mesmo estado de desenvolvimento. É um trabalho que vai ter de se fazer, mais cedo ou mais tarde.

Faria sentido, para si, a separação da área internacional do grupo AdP, por um lado, e, por outro, a separação dos resíduos sólidos?
Não faz sentido. Não conheço nenhum grupo internacional do sector das águas que não tenha a componente internacional e a dos resíduos, porque há muitas sinergias na gestão dos dois sectores são serviços com uma grande interligação com os municípios, onde os consumidores são os mesmos, onde até a facturação é facilitada, porque proporcional ao consumo de água. Portanto, qual é o objectivo dessa separação? E a AdP Internacional faria o quê? Iria concorrer no mercado internacional? Não teria know-how, nenhuma capacidade por trás, qual é a vantagem?

Faz sentido manter a internacionalização das águas?
Para mim, faz. E não tem de ser só no negócio das concessões, pode também ser na assessoria, aconselhamento, organização, planeamento. São áreas em que a AdP tem uma larga experiência, aliás reconhecida pelos organismos da União Europeia, pela forma como conduziu os dossiers do III e IV QCA. Essa experiência é muito valiosa, seja para os países do alargamento, seja para os de expressão portuguesa e outros.

Os privados acusam a Aquapor de concorrência desleal...
É razão para perguntar, então, por que é que essas mesmas empresas se aliam, por exemplo à Caixa Geral de Depósitos (CGD), para concursos. A Electricité de France farta-se de entrar em concursos nacionais e internacionais, qual é o problema? A Somague anunciou que tinha um acordo com a CGD para comprar a Aquapor. Mas a CGD não é pública? Não percebo qual é a lógica... Isso já não é desleal?

Que investimentos serão ainda necessários, quer nas águas quer nos resíduos sólidos, nos próximos anos?
É preciso investir ainda muitos milhões de euros, numa área e noutra. Neste momento, diria que nos resíduos sólidos urbanos temos as infra-estruturas, mas temos de aprofundar muito a recolha selectiva, a recuperação das embalagens e o problema da matéria orgânica. Depois, temos os resíduos industriais, banais e perigosos. Para muitos dos banais, ainda não temos tratamento adequado. No que respeita aos resíduos perigosos, produzimos cerca de 250 mil toneladas/ano, que têm que ser tratados de forma diferenciada, o que implica uma separação prévia. Mas, dessas 250 mil toneladas, há 80 mil para as quais não há tratamento e que, portanto, têm de ser incineradas.

É defensor da co-incineração?
Na incineração há duas modalidades incineradora dedicada (pequena fábrica construída para esse único efeito) ou, então, a co-incineração, para a qual se utilizam normalmente os fornos das cimenteiras. A co-incineração tem a vantagem de que já existe, vai continuar a existir e a sua economia não depende do afluxo de resíduos. Os inconvenientes são que podem ser produzidas substâncias perigosas, as dioxinas, por exemplo. Mas já é um processo controlado. O que é que acontece hoje em dia? As 80 mil toneladas não estão a ser tratadas. Ficam por aí, ou exportamos, para serem queimadas, em co-incineração, noutros países, o que é um contra-senso. E há outra questão importante, é que nós não começámos a fazer co-incineração de resíduos perigosos agora, já fazemos há muitos anos. Onde estão? Espalhados pelo País: em Estarreja, Sines, em muitos sítios. E estão todos misturados. Esse passivo ambiental não é passível de ser tratado, porque não é separável.

Como é que se resolve o problema?
Enquanto não há solução melhor, há que dar cabo, todos os anos, de 80 mil toneladas para a qual não há outra forma de tratamento. Não sou defensor da co-incineração, nem de nenhum processo em particular, devemos reutilizar, reciclar, queimar e fazer o que estiver ao alcance da tecnologia, tratanto os que não for possível por processos que são aceites em toda a Europa avançada, onde a co-incineração é um processo corrente e utilizado. Em Portugal há muita demagogia, a co-incineração aparece como algo monstruoso, transformou-se numa questão política.

A construção de futuras barragens deve ser vista numa óptica de produção de electricidade ou de criação de reservatórios de água?
Tem de se ver as duas vertentes em conjunto, não são contraditórias. Criou-se uma posição contra as barragens, que é um disparate. Portugal é rico em água, mas temos meses e em algumas regiões anos, em que não chove. Há que regularizar, e isso só se faz com barragens. Só conseguimos armazenar 13% do escoamento anual, em Espanha consegue-se 60%. E muitas das barragens podem ser utilizadas para produzir energia eléctrica. Do nosso potencial hidroeléctrico aproveitamos 60%. Ora, se o temos, será lógico apro- veitá-lo. Por outro lado, Portugal está obrigado a produzir 39% de energia sem ser a partir de fósseis, até 2010. A eólica é importante, mas as barragens são 'um bem maior'. Tenho dúvidas, por exemplo, de que o abastecimento de água no Algarve nos próximos anos se faça sem a barragem de Odelouca. E o Algarve, para desenvolver o turismo, tem de ter água. Fazemos má utilização das águas subterrâneas, mas este ano vamos ter de aproveitá-las. Quanto às barragens, não estou nada de acordo com as posições que são contra. Não se pode ficar paralisado com fundamentalismos.

Quando é que teremos água de qualidade em todo o país?
Se o PS ganhar com maioria absoluta, em 2010.
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