quinta-feira, setembro 23, 2004
e-government ?
O drama que o País está a viver há vários meses, com a incapacidade do Governo para executar uma acção relativamente simples e rotineira, como é a da colocação de professores das escolas públicas, é um bom exemplo do descalabro que progressivamente se tem vindo a instalar em muitos sectores da administração do Estado.
No caso vertente, são centenas de milhar de alunos que vêem o início do seu ano escolar irremediavelmente prejudicado, mais de 50 000 docentes afectados pela incerteza quanto ao local do País e à escola onde vão exercer a sua actividade, e centenas de milhar de famílias - dos alunos e dos docentes - instabilizadas pelos efeitos fortemente negativos de toda esta situação.
Note-se que estamos perante uma matéria que há já cerca de dez anos vinha a ser tratada sem dificuldades de maior, e em que agora se assiste, portanto, a um tremendo retrocesso.
Respondendo às justas críticas e exigências dos partidos da oposição, dos sindicatos e organizações sócio-profissionais ligadas ao ensino e de muitos outros sectores da sociedade, e pesem embora as lamentáveis e caricatas posições desculpabilizantes protogonizadas por alguns deputados dos partidos que apoiam o Governo, este acabou por reconhecer a gravidade da situação e já declarou que vai apurar responsabilidades.
É sempre bom que se apurem as responsabilidades, sejam elas políticas, administrativas, técnicas ou outras, por este tipo de fracassos governativos, e que desse apuramento se tirem as devidas consequências. Mas julgo que se tal apuramento de responsabilidades não for ao fundo das questões em jogo e se ficar apenas pelas causas mais directas e imediatas, então vamos continuar a assistir à repetição e agravamento deste tipo de problemas em várias áreas da governação.
Na realidade, não é difícil imaginar, por exemplo, que à actual Ministra da Educação possam vir a ser assacadas responsabilidades por erros de avaliação política da situação criada; que aos serviços do Ministério da Educação possam vir a ser assacadas responsabilidades por descoordenação entre si e com a empresa escolhida para desenvolver a aplicação informática da colocação dos professores; ou que a esta empresa possam vir a ser assacadas responsabilidades por erros técnicos cometidos.
Mas o que me parece mais importante é constatar que, por detrás destas eventuais responsabilidades, está uma determinada cultura de governação apostada na desvalorização e desperstígio do sector público; no endeusamento do mercado e do sector privado; na partidarização da administração do Estado, priviligiando a cor política e o amiguismo face ao conhecimento e à competência; na sub-avaliação e desconsideração do trabalho anteriormente realizado; na preocupação de tudo querer mudar só para ser diferente, sem se conhecer e estudar bem a realidade que se quer mudar.
É esta cultura de governação que conduziu, por exemplo, a que o anterior Ministro da Educação tivesse começado por alterar a orgânica do seu Ministério, mas depois tivesse levado dois anos a fazer as leis orgânicas dos respectivos serviços, deixando arrastar a indefinição nas suas atribuições e competências e a manutenção de chefias provisórias, provocando a paralisia de grande parte destes serviços e a desmotivação dos seus funcionários; a que esse Ministro e os seus Secretários de Estado não se entendessem; a que a então Secretária de Estado da Educação fosse completamente inadequada para o cargo; a que se tivesse substituído um sistema de colocação de professores que estava a funcionar por outro, sem se assegurar a realização prévia dos necessários testes de qualidade dos seus resultados; a que se tivesse escolhido para nova Ministra da Educação uma pessoa que tem certamente muitas qualidades e competências noutras áreas do saber, mas que não tem, claramente, pelo menos uma das qualificações exigíveis para o cargo: conhecimentos técnicos específicos ou experiência política; ou a que o Primeiro-Ministro anunciasse que iria implementar o e-government e a Ministra da Educação tivesse passado a fazer manualmente, e com enorme atraso, a colocação dos professores.
(Artigo publicado no "Diário Económico" de 23.Set.2004)
quinta-feira, setembro 09, 2004
Um desastre anunciado
É hoje perfeitamente claro que o Ambiente constitui uma das áreas da governação em que, nos últimos dois anos e meio, o nosso País tem evidenciado maior indefinição política e estratégica, maior estagnação no seu desenvolvimento, e mesmo um acentuado retrocesso relativamente a metas já anteriormente alcançadas. Pode-se mesmo dizer que, até agora, a principal dinâmica introduzida na área do Ambiente foi a da mudança de Ministro: já vamos em quatro nestes dois anos e meio, com as consequentes alterações a nível de Secretários de Estado, adjuntos e assessores. O que se passa com a política da água é um exemplo bem gritante desta situação.
A transposição da importantíssima Directiva-Quadro da Água, que Portugal se comprometeu realizar até ao final de 2003 e cujo atraso já deu origem a um processo pré-contencioso movido pela UE contra o nosso País, continua a arrastar-se penosamente, sem fim ainda à vista. Situação semelhante passa-se com a elaboração da nova Lei da Água, considerada imprescindível para definir o enquadramento legal e institucional capaz de garantir o adequado cumprimento da referida Directiva. Recorde-se que, em Março de 2002, o então Ministro do Ambiente, José Sócrates, deixou ao seu sucessor, Isaltino Morais, um anteprojecto de Lei da Água que cumpria estes dois objectivos. Mas depois disso, já se anunciaram novas orientações sobre esta matéria, já se criaram três Grupos de Trabalho, já se submeteu à discussão pública e no Conselho Nacional da Água um novo anteprojecto de Lei da Água e já se anunciaram, por diversas vezes, datas para conclusão do processo. Mas a coisa não sai.
É evidente que as sucessivas alterações de titular do Ministério têm criado uma grande instabilidade nesta área da governação, pouco propícia para a tomada de decisões, mas essa foi a opção seguida por Durão Barroso e Santana Lopes, sendo portanto da sua inteira responsabilidade. As consequências negativas desta situação, no entanto, são para o País.
A implementação do PEAASAR - Plano Estratégico de Abastecimento de Água e de Saneamento de Água Residuais (2000 - 2006) aprovado em Abril de 2000 e que visa colocar Portugal ao nível da média da UE no que se refere aos níveis de atendimento da população nesta matéria, completando, assim, a acentuada e reconhecida melhoria verificada no nosso País a partir de 1993, perdeu a sua dinâmica inicial e está agora, também, muito atrasada, correndo-se sérios riscos de virmos a perder uma parte significativa dos fundos comunitários disponibilizados, para o efeito, no âmbito do III Quadro Comunitário de Apoio.
Nesta matéria, no entanto, as causas do atraso não resultam tanto das alterações ministeriais, mas mais das opções políticas do Governo de Durão Barroso, que tudo indica irão continuar a ser seguidas pelo Governo de Santana Lopes.
O que antes era fundamentalmente visto como um serviço público básico cuja prestação o Estado tinha a inalienável obrigação de promover, em condições de adequada sustentabilidade técnica, económica, financeira, social e ambiental, mobilizando, para o efeito, o que de melhor o País dispõe nesta matéria - recursos humanos especializados, conhecimento, experiência, capacidade de planeamento, organização e gestão, e recursos financeiros próprios e comunitários - envolvendo nesse objectivo o sector público e o sector privado, passou a ser visto, prioritariamente, como um negócio, em que se movem grandes interesses que passaram a influir, marcadamente, na política a seguir.
Enquanto antes as preocupações fundamentais se prendiam com a necessidade de rapidamente se infra estruturar o País para melhor servir as populações, com o cumprimento dos orçamentos, metas e prazos previstos para essa infra estruturação, com a qualidade dos serviços prestados aos consumidores, com as políticas de utilização racional e de poupança da água, com o combate às fugas e desperdícios, e com a plena e atempada utilização dos fundos comunitários, a tónica agora é posta, prioritariamente, na eufemística «reestruturação do sector da água», identificada com a melhor forma de organizar esta actividade para ela se tornar um negócio mais atraente e rentável para os interesses privados.
O desastre está, pois, anunciado.
(Artigo publicado no "Diário Económico" de 9.Set.2004)