quinta-feira, maio 20, 2004
A reestruturação do Sector da Água
Decorridos mais de dois anos de mandato, o Governo deu finalmente a conhecer o seu Modelo de Reestruturação do Sector das Águas em Portugal. O referido modelo, aprovado por resolução do Conselho de Ministros, define, no essencial, a orientação política que o Governo pretende implementar com vista ao reordenamento empresarial dos serviços de abastecimento de água e saneamento de águas residuais e, em particular, à reestruturação e privatização do Grupo Águas de Portugal (AdP).
Em primeiro lugar, há que referir que esta orientação, por um lado, reconhece e mantém a AdP como um muito importante instrumento empresarial das políticas públicas do ambiente e do desenvolvimento regional, o que se considera positivo; mas, por outro lado, restringe substancialmente o seu âmbito de actuação, ao definir que a AdP deve exercer prioritariamente a sua actividade na prestação de serviços de abastecimento de água e de saneamento de águas residuais "em alta", através do controle accionista das actuais empresas multimunicipais.
Ao prescrever a alienação total da Aquapor, da AdP Internacional e da EGF, a orientação do Governo abdica de manter a AdP como um importante e internacionalmente reconhecido grupo empresarial de raiz nacional na área do ambiente, com inegáveis capacidades de intervenção nos mercados nacional e internacionais, deixando o Estado menos equipado para o exercício das suas inalienáveis responsabilidades em matéria ambiental, e pondo em risco a manutenção, em Portugal, de importantes centros de decisão e competência que vinham a ser desenvolvidos, com assinalável êxito, desde 1993, não se vislumbrando os benefícios daí resultantes para o País.
A forma como essas alienações vão ser feitas é ainda desconhecida, podendo as consequências negativas para o País ser ainda maiores se tais alienações se traduzirem pelo desaparecimento destas empresas do mercado em resultado da sua integração em grupos ou empresas ligados a centros de decisão e de competências localizados fora do País, o que, contrariamente ao que o Governo diz pretender, em nada iria fortalecer o tecido empresarial português na área do ambiente, nem promover a afirmação das competências e capacidades portuguesas nos mercados internacionais.
Em segundo lugar, a anunciada abertura do capital social da AdP até ao limite de 49% do seu total, mediante novas entradas em dinheiro realizadas por investidores institucionais e particulares através do mercado de capitais, é apresentada com tendo por objectivo permitir o encaixe financeiro necessário para a AdP poder adequadamente alavancar os elevados investimentos que tem de realizar para concluir a infra-estruturação do País em abastecimento de água e saneamento, conservando o Estado o controle accionista da empresa que lhe permite assegurar a manutenção de um actor de referência e de um centro nacional de decisão. Ora se estes objectivos são compreensíveis e se a preocupação de manter o controle accionista do Estado sobre a AdP é positiva, já não se compreende porque é que tal abertura de capital necessita atingir os 49%. Na realidade, face a várias avaliações feitas ao Grupo AdP, na base das quais a AdP já teve, inclusivamente, em 2001, uma proposta firme da EDP para uma entrada de 10% no seu capital social, e face ao volume de investimentos a realizar, não parece justificar-se uma tão grande abertura do capital social da AdP para alavancar aqueles investimentos. Esta é, certamente, uma matéria que deve ser devidamente elucidada.
Em suma, e numa primeira análise, julga-se que esta orientação do Governo, ao enfatizar a questão da privatização da AdP, introduz alterações ao quadro actual que desvirtuam o que deveria ser um grande desígnio nacional para o sector do abastecimento de água e saneamento: a mobilização e fortalecimento das capacidades e competências portuguesas, públicas e privadas, que são muito grandes neste sector, mantendo e desenvolvendo o nosso centro de decisão e competências, com vista à resolução dos problemas ainda existentes no País e à sua intervenção nos mercados internacionais.
Artigo publicado no "Diário Económico" de 20.Mai.2004)
quinta-feira, maio 06, 2004
O que torto nasce...
A forma como o projecto do túnel do Marquês tem vindo a ser conduzido é paradigmática de um estilo atrabiliário e insensato de tomada de decisões sobre questões de grande importância política, económica, social e ambiental, infelizmente ainda muito em voga no nosso País. Ela reflecte também a impreparação e o grande atraso cultural de muitos dos nossos governantes e, frequentemente, uma concepção autoritária e pseudo iluminada do poder.
A primeira questão, que desde início se levantou, tem a ver com as razões que presidiram à decisão da construir o túnel. Que problemas se pretendem resolver com essa construção? Que impactos negativos significativos são induzidos por essa solução? Que soluções alternativas existem para resolver esses problemas? Qual o balanço entre vantagens e inconvenientes entre essas várias soluções alternativas? Até ao momento, estas interrogações não tiveram ainda uma resposta minimamente clara, convincente e mobilizadora para grande parte da população de Lisboa, sendo a solução túnel adoptada bastante contestada por muitos técnicos e especialistas na matéria.
A construção e exploração de túneis rodoviários revestem-se, em muitos casos, de acentuada complexidade, em função, por exemplo, da área onde se inserem e da sua ocupação e utilização, da natureza e morfologia dos terrenos e linhas de água que atravessam, do volume e tipo de tráfego a que se destinam, da sua extensão, dos bens patrimoniais e ambientais que podem irreversivelmente lesar, etc., sendo certamente o túnel do Marquês um dos caos em que todas estas questões têm particular relevância.
Por esse motivo, a construção e exploração destes túneis têm merecido a atenção das instituições competentes da União Europeia, estando neste momento a ser ultimada uma Directiva do Parlamento Europeu e do Conselho relativa aos requisitos mínimos de segurança para os túneis da Rede Rodoviária Transeuropeia. Se é certo que esta Directiva não se aplica ao túnel do Marquês, dado não fazer parte daquela Rede, não é menos certo que a Directiva, para estes casos, recomenda, a todos os Estados-membros, a implementação de níveis de segurança comparáveis aos que constam da Directiva.
Precisamente para garantir esses níveis mínimos de segurança, a Directiva define um conjunto muito importante e numeroso de critérios que obrigatoriamente devem ser observados na concepção, construção e exploração de túneis rodoviários, e que cobrem aspectos como a geometria dos túneis, as vias de evacuação e saídas de emergência, a drenagem, a ventilação, os sistemas de vigilância e de detecção e combate a incêndios, etc. Por exemplo, no que se refere à geometria dos túneis, a Directiva determina que não devem ser permitidos declives superiores a 5%, sendo que o túnel do Marquês apresenta declives muito superiores.
A segunda questão tem a ver com a forma como a obra foi adjudicada por ajuste directo e com a forma como se deu início aos trabalhos, aparentemente sem estarem reunidas as necessárias condições técnicas e legais para estas tomadas de decisão. Que razões ponderosas justificam tais procedimentos aligeirados e apressados, quando se está perante uma obra de tão grande responsabilidade?
A terceira questão tem a ver com a forma "esperta" e pouco compatível com os tão propalados conceito de desenvolvimento sustentável e princípio da precaução - que ficam sempre bem nos discursos políticos, mas a que frequentemente se procura fugir na prática - com que se pretende levianamente ultrapassar o espírito da legislação nacional e comunitária relativa à avaliação do impacte ambiental dos projectos susceptíveis de produzirem efeitos negativos significativos, directos e indirectos, sobre o ambiente natural e social, como é claramente o caso do túnel do Marquês.
Recorrer a interpretações especiosas dessa legislação, na procura de eventuais "frestas" por onde se possa fugir ao seu cumprimento, quando o que se exigia, face à natureza do projecto, era que a avaliação de impacte ambiental, com a correspondente consulta pública fossem realizadas, mesmo que a legislação em vigor a isso não obrigasse taxativamente, evidencia claramente uma visão retrógrada de desenvolvimento que já devia ter sido ultrapassada.
(Artigo publicado no "Diário Económico" de 6.Mai.2004)