sábado, novembro 15, 2003

Águas turvas no Sector da Água

Quem tem acompanhado com alguma atenção, numa perspectiva da defesa do interesse público, a evolução do Sector da Água em Portugal ao longo dos últimos dez anos, não pode deixar de ter notado, com grande perplexidade e preocupação, a tremenda confusão introduzida no Sector desde que o actual Governo entrou em funções.

Em Fevereiro de 1993, o Governo Cavaco Silva aprovou uma estratégia clara para ultrapassar o grande atraso que então se verificava no atendimento da população portuguesa em termos de abastecimento de água para consumo público e de saneamento de águas residuais urbanas, tanto nos seus aspectos quantitativos como qualitativos. Esta estratégia assentava, fundamentalmente, na utilização eficiente e eficaz dos fundos estruturais da EU, e na empresarialização da indústria da água - !entendida como instrumento de gestão profissionalizada, imprescindível para a resolução dos problemas existentes.

A adopção desta estratégia levou à alteração da Lei de Delimitação de Sectores - de forma a incentivar também a participação do sector privado no grande esforço de investimento a realizar - bem como à criação dos Sistemas Multimunicipais, considerados estruturantes na implementação da estratégia definida. Neste contexto, e face aos fundos estruturais da UE então disponíveis, foram desde logo criados seis Sistemas Multimunicipais.

No que respeita à participação do sector privado na exploração e gestão dos sistemas, até então legalmente vedada, ela passou a poder fazer-se de forma minoritária ou maioritária no que se refere aos Sistemas Municipais, e apenas de forma minoritária no que se refere aos Sistemas Multimunicipais, ficando desde logo definido que, relativamente a estes, tal participação minoritária só teria lugar numa fase mais adiantada do processo. Esta diferenciação na forma de participação do sector privado teve como fundamentos:

O mérito desta estratégia foi, posteriormente, reconhecido pelos Governos de António Guterres que, por isso, a assumiram e lhe deram continuidade, desenvolvendo-a, com base na experiência entretanto obtida, na preparação do PEAASAR - Plano Estratégico de Abastecimento de Agua e de Saneamento de Águas Residuais (2000-2006).

A implementação desta estratégia decorreu, desde o seu início, com bastante sucesso, aliás reconhecido tanto a nível nacional como internacional, designadamente por instituições da União Europeia.

Assim, e em resultado da acção concertada dos Governos, dos municípios e da AdP-Águas de Portugal, verificou-se um enorme progresso no nosso País no período 1994-2001, no que se refere aos níveis de atendimento da população e à qualidade dos serviços prestados em termos de abastecimento de água potável e de saneamento de águas residuais com tratamento adequado.

Ao longo deste período, a AdP-Águas de Portugal teve como importantes missões ser um instrumento empresarial da política pública do ambiente ao serviço das populações e do desenvolvimento económico e social, a nível nacional, regional e local, e liderar a constituição e desenvolvimento de um forte Grupo empresarial de base nacional no domínio do ambiente. O valor do Grupo, neste período, aumentou mais de oito vezes, tornando-se num dos dez maiores Grupos empresariais a nível mundial no seu domínio de actividade e, a nível ibérico, no segundo maior Grupo com reais perspectivas de alcançar o primeiro lugar. Tais factos não podem deixar de constituir motivo de grande satisfação, e de orgulho e confiança nas nossas capacidades e no profissionalismo dos nossos quadros e trabalhadores.

Não há, certamente, em Portugal, muitas empresas que tenham evidenciado uma peiformance deste tipo, nem muitos sectores de actividade em que o nosso País tenha uma posição de tão grande destaque.

O grande volume de investimento a realizar pelo Grupo no âmbito da implementação do PEAASAR e o normal desenvolvimento da sua actividade nos mercados nacional e internacionais obrigavam ao reforço dos seus capitais próprios e aconselhavam o estabelecimento de parcerias. Era este, em 2001, o enquadramento definido para a entrada de capitais privados na AdP-Águas de Portugal, a qual deveria ser feita em posição minoritária e sem afectar a unidade do Grupo e o seu carácter de instrumento empresarial da política pública do ambiente.

Por outro lado, o PEAASAR considerava ter chegado o momento de incentivar a participação de capitais privados nos Sistemas Multimunicipais, conforme previsto em 1993. Pretendia-se, ainda, alargar a intervenção do sector privado nestes sistemas através de formas de subconcessão e/ou prestação de serviços no domínio da exploração e gestão operacionais.

Com a entrada em funções do actual Governo, esta estratégia parece ter sido inexplicavelmente abandonada e substituída por outra assente na imperatividade do desmantelamento e privatização do Grupo, sem que se vislumbrem os benefícios daí resultantes para o País.

A forma como o processo tem sido conduzido é, no mínimo, atabalhoada e reveladora de que o Governo está mal informado e tem sido mal aconselhado sobre esta matéria, parecendo desconhecer a actividade e as potencialidades do Grupo, os mercados onde actua e os principais actores nacionais e internacionais presentes nesses mercados.

Começou por se anunciar a privatização, a curto prazo, ora da EP AL, ora das empresas concessionárias dos Sistemas Multimunicipais, ora da Aquapor, ora da AdP-Águas de Portugal, para se concluir, passados oito meses, que, primeiro, era preciso desenvolver estudos sobre o enquadramento, organização empresarial e desenvolvimento estratégico do Sector da Agua em Portugal.

Para esse efeito, o Ministério do Ambiente criou, em Novembro de 2002, um Grupo de Trabalho constituído por pessoas que possuindo, certamente, grandes competências em diversos domínios de actividade, não se julga terem quaisquer qualificações ou experiência relevantes no Sector da Água, em geral, ou do abastecimento de água e saneamento, em particular. Por outro lado, e para o mesmo efeito, os Ministérios das Finanças, da Economia e do Ambiente criaram depois, conjuntamente, em Fevereiro de 2003, outro Grupo de Trabalho. De acordo com os respectivos Despachos Ministeriais, os custos de funcionamento destes Grupos de Trabalho foram imputados à AdP-Águas de Portugal, o que parece ser um procedimento de desorçamentação tão criticado no passado pelos partidos que suportam o actual Governo. Tanto quanto se sabe, só o primeiro destes Grupos apresentou o resultado do seu trabalho.

Para apoiar a realização da sua actividades, o primeiro Grupo de Trabalho decidiu recorrer a um consultor externo, tendo escolhido uma empresa multinacional relativamente à qual não foram tornadas públicas as competências específicas no Sector da Água que justifiquem tal escolha. Aliás, seria também interessante conhecer-se a composição e currículo da equipa mobilizada pelo consultor, para clarificar esta questão, tanto mais que estão envolvidos custos muito elevados nesta consultoria.

Entretanto, deixou de se ouvir falar das missões do Grupo Águas de Portugal, passando-se, no entanto, a saber que as tarifas dos Sistemas Multimunicipais vão ter que aumentar substancialmente, relativamente ao que estava anteriormente previsto, que o investimento a realizar para atingir as metas do PEAASAR terão que ser muito superiores (seria interessante que quem fez esses cálculos os apresentasse publicamente) e que as metas do PEAASAR não vão ser atingidas em 2006.

Compreendem-se, assim, as dúvidas do Governo e do actual Ministro do Ambiente face ao trabalho produzido, e a necessidade sentida de recorrerem a um terceiro Grupo de Trabalho para clarificar a turvação introduzida no Sector. Aguardam-se os próximos resultados.

(Artigo publicado no "Expresso" de 15.Nov.2003)


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